Aspectos gerais do Princípio da Segregação de Funções

A condução dos procedimentos licitatórios, assim como a execução e fiscalização dos contratos administrativos, acabam sendo motivo para a concentração de funções exercidas por um único servidor.

Por Jacinta Macedo Birkner Guimarães[1]

A condução dos procedimentos licitatórios, assim como a execução e fiscalização dos contratos administrativos, na Administração Pública, acabam sendo motivo para a concentração de funções diversas exercidas por um único servidor. Assim, um mesmo agente público executa atividades de operação, controle, execução aprovação, pagamento, tendo completa autoridade para deliberar sobre cada etapa. Estas funções, primordialmente conflitantes, são comumente executadas diuturnamente na Administração Pública, nos moldes do exemplo acima citado, em clara afronta ao Princípio da Segregação de Funções.

Este é um dos princípios basilares de controle interno da Administração, e informa que determinadas tarefas não devem ser cumuladas em um só servidor, visando à imparcialidade de julgamentos, o controle, a segurança na aprovação e nos pagamentos efetuados pela Administração, a fim de evitarem-se qualquer tipo de benesse indevida a terceiros. Ou seja, nas palavras do Tribunal de Contas da União (TCU), um mesmo servidor não deve ser responsável para realizar as atividades de fiscalização e de supervisão de contratos, conforme pronunciamento no Acórdão 2.296/14 – Plenário. Veja-se:

As boas práticas administrativas impõem que as atividades de fiscalização e de supervisão de contrato devem ser realizadas por agentes administrativos distintos (princípio da segregação das funções), o que favorece o controle e a segurança do procedimento de liquidação de despesa.

Pedidos de Reexame interpostos por gestores da Superintendência Regional do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes no Estado do Paraná (Dnit/MT) requereram a reforma de deliberação do TCU pela qual os responsáveis foram condenados ao pagamento de multa em razão, dentre outras irregularidades, da “emissão fraudulenta dos Boletins de Desempenho Parciais, a partir da inclusão de dados falsos no Sistema de Acompanhamento de Contratos (SIAC)”. Ao analisar o ponto, o relator, reiterando o exame realizado pelo relator a quo, consignou que houve “irregularidades nos procedimentos de aprovação das medições, no tocante à identificação dos verdadeiros responsáveis pela fiscalização dos contratos e à segregação de funções no que tange a essa atividade”. Destacou que a fiscalização empreendida pelo Dnit nos contratos envolvidos “não cumpriu os normativos internos do próprio órgão nem as portarias de designação de fiscalização”. Nesse sentido, ressaltou o relator que quem atestou a execução dos serviços não foi o fiscal designado pelo órgão, mas o Chefe do Serviço de Engenharia, “que, além de não comparecer a campo para verificar a real execução das obras, deixou de exercer o trabalho de supervisão do fiscal, conforme impõe o Regimento Interno e o princípio da segregação de funções”. Em relação a alegação dos recorrentes de que “a superintendência do DNIT participou apenas da fase de liquidação, sendo as demais fases da despesa (empenho e pagamento) realizadas por outras áreas”, ressaltou o relator que a segregação das etapas de liquidação e pagamento “não elimina a necessidade, inclusive por imposição regimental, de separação das atividades de fiscalização e atesto dos serviços realizados e, em seguida, de supervisão dos trabalhos anteriores”. Por fim, concluiu pela improcedência das alegações recursais quanto ao ponto, consignando que “as boas práticas administrativas, impõem que as atividades de fiscalização, descritas na Norma Dnit 097/2007 – PRO, e de supervisão, conforme o Regimento Interno do Dnit, devem necessariamente ser realizadas por agentes administrativos distintos, o que favorece o controle e, portanto, a segurança do procedimento de liquidação de despesa”. Seguindo o voto da relatoria, o Plenário do Tribunal manteve a sanção imposta aos recorrentes. Acórdão 2296/2014-Plenário, TC 001.359/2009-2, relator Ministro Benjamin Zymler, 3.9.2014.[2]

Ademais, vale lembrar que o Princípio da Segregação de Funções deriva do Princípio constitucional da Moralidade, lavrado no art. 37 da Carta Magna. No ensinamento de Celso Antônio Bandeira de MELLO, este princípio orienta que “a Administração e seus agentes têm de atuar na conformidade de princípios éticos. Violá-los implicará violação ao próprio Direito, configurando ilicitude que assujeita a conduta viciada a invalidação”.[3]

Desta forma, para que a Administração atue de forma eficaz e em pleno atendimento aos princípios, em especial ao Princípio da Segregação das Funções, é fundamental que se estabeleçam critérios claros e definidos da sua organização interna, por meio da elaboração de um conjunto de rotinas administrativas que priorize a segregação de funções.

Aproximando o tema à seara de Licitações e Contratos Administrativos, temos que, em observância ao Princípio da Segregação de Funções, o Pregoeiro e sua equipe de apoio, assim como o presidente da CPL e seus membros, não podem ser responsáveis, por exemplo, pela elaboração do edital, acrescidos ainda de toda a gama de atribuições legais já impostas, inerentes à fase externa do certame. É cediço, por exemplo, que um pregoeiro, responsável pelo julgamento de impugnações, não terá a necessária imparcialidade para reconhecer a existência de um vício no edital por ele elaborado. Infelizmente, esta é a realidade de muitos Órgãos e Entidades da Administração, que relega a estes servidores a cumulação de atividades/funções incompatíveis entre si. Reforçamos, pois, o que instrui o TCU: “Acórdão: (…) 9.6.7. deve-se evitar a nomeação de mesmos servidores para atuar, nos processos de contratação, como requisitante, pregoeiro ou membro de comissão de licitação, fiscal de contrato e responsável pelo atesto da prestação de serviço ou recebimento de bens, em respeito ao princípio da segregação de funções”.[4]

Vejamos a conhecida lição do administrativista MELLO:

Violar um princípio é mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra.[5]

Por fim, deve sempre a Administração Pública pautar-se na obediência aos princípios constitucionais, e ao destacado Princípio da Segregação das Funções, objetivando um maior controle e segurança na realização dos atos administrativos, abolindo terminantemente qualquer acúmulo indevido de funções aos seus agentes.


[1] Advogada, Pós-graduada em Direito Administrativo e Consultora Jurídica do Grupo Negócios Públicos.

[2] Vede, também: “Acórdão: VISTOS, relatados e discutidos estes autos de Tomada de Contas Especial oriunda da conversão da Representação formulada pela Secex-PE, em razão de notícias veiculadas na imprensa sobre possível malversação de recursos públicos utilizados na construção de muros, guaritas e pinturas no Departamento Nacional de Obras Contra as Secas – Coordenadoria Estadual em Pernambuco, ACORDAM os Ministros do Tribunal de Contas da União, reunidos em sessão da 1ª Câmara, ante as razões expostas pelo Relator, em: 9.4. determinar ao Departamento Nacional de Obras Contra as Secas, Coordenadoria Estadual em Pernambuco, que, nos futuros procedimentos licitatórios da espécie: (…) 9.4.3. designe servidores distintos para compor comissão de licitação e para efetuar a fiscalização de contratos, em respeito ao princípio da segregação de funções” (sem grifos no original). (TCU. Acórdão 1.997/06. Órgão Julgador: Primeira Câmara. Relator: Ministro Augusto Nardes. DOU: 31/07/0); e “Acórdão: 9.6.7. deve-se evitar a nomeação de mesmos servidores para atuar, nos processos de contratação, como requisitante, pregoeiro ou membro de comissão de licitação, fiscal de contrato e responsável pelo atesto da prestação de serviço ou recebimento de bens, em respeito ao princípio da segregação de funções”. (TCU. Acórdão 5.840/12. Órgão Julgador: Segunda Câmara. Relator: Ministro José Jorge. DOU: 07/08/12).

[3] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 119.

[4] TCU. Acórdão 5.840/12. Órgão Julgador: Segunda Câmara. Relator: Ministro José Jorge. DOU: 07/08/12.

[5] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Op. cit. p. 967.

 

Comentário do Dr. Renato Monteiro: 

A autora transcreve severo alerta sobre violação do princípio da segregação de funções na Administração Pública. Coleciona posições fortes que sustentam a de si própria, posição esta compartilhada por todos do escritório Renato Monteiro Advocacia. Fato que nos entristece é termos que enfrentar o tema todos os dias, bradar sobre o flagrante desrespeito à falada norma e presenciar a incapacidade da administração pública em evoluir nesse tema. A propósito, registre-se que, na grande maioria dos casos, a não observância nasce das dificuldades existentes nos órgãos públicos, qual seja a falta de recursos para capacitar as equipes de trabalho. Os que fazem a má cultura, ainda os rotulam de irresponsáveis, pois estão apostando em treinamento e capacitação, quando deveriam direcionar esses valores para outros fins.

 

Fonte: Portal Sollicita

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